Mais complexos dos que os conceitos de liderança e traição podem explicar
O informante do FBI William O’Neal (LaKeith Stanfield) se infiltra no Partido dos Panteras Negras de Illinois e tem a missão de manter o controle sobre seu líder carismático, o presidente Fred Hampton (Daniel Kaluuya). Um ladrão de sucesso, O’Neal revela o perigo de manipular seus companheiros e seu treinador, o agente especial Roy Mitchell (Jesse Plemons). As proezas políticas de Hampton crescem enquanto ele se apaixona pela colega revolucionária Deborah Johnson (Dominique Fishback). Enquanto isso, uma batalha se trava pela alma de O’Neal.
“Judas e o Messias Negro”, traz à tona uma história pouco conhecida dos Panteras Negras – partido político norte-americano surgido em defesa da comunidade afro-americana. A história de Fred Hampton, líder negro em ascensão no final dos anos 60, se confunde com a trajetória de William O’Neal, um personagem ambíguo que se infiltrou nos Panteras Negras e seria decisivo para a vida de Fred. Apesar de o filme tratar de uma história real, fique atento para possíveis spoilers na continuação deste texto.
É fato, que contar uma história baseada em acontecimentos reais tem suas vantagens e desvantagens, e o roteiro de Shaka King e Will Berson pende para os dois lados. O desenvolvimento se aproveita da força da história para nos envolver rapidamente, é o que podemos ver logo no incidente que causa o primeiro plot point, onde entendemos quem é o protagonista desse filme (O’Neal), e a origem de seus conflitos internos. Por outro lado, por vezes, o roteiro também tem dificuldade de se desapegar de algumas passagens que não contribuem tanto para a narrativa e deixam o filme mais longo do que o necessário.
“Judas e o Messias Negro”, faz a apresentação do universo dos personagens com rara competência, esse primeiro ato cumpre exatamente a função de nos deixar vibrados esperando pelo desfecho dessa trama (mesmo que você já a conheça). Num trabalho conjunto de roteiro, direção e edição, o filme nos deixa completar “lacunas”, sem entregar respostas muito evidentes (até porquê, algumas dessas respostas, efetivamente, não passariam de especulações).
Temos um vislumbre sobre a diferença de Fred Hampton para os demais líderes dos Panteras Negras, assim como temos uma argumentação muito genuína sobre as motivações do F.B.I para persegui-lo. O mítico líder do F.B.I, J. Edgar Roover (aqui interpretado por um irreconhecível Martin Sheen ), vende a ideia de que os Panteras Negras são comparáveis a própria Ku Klux Klan, por sua truculência e ideias extremas, ideia comprada por boa parte da força policial – reforçada por uma grande tendência ao racismo, obviamente.
Boa parte dessas leituras são facilitadas pela direção assertiva do estreante Shaka King, que entende o poder da história que tem em mãos e, principalmente, entende a humanidade dos personagens ali retratados. O ponto mais forte desse trabalho está na direção de elenco. Cada cena traz traços de realismo que te fazem ter empatia mesmo pelos “vilões” do longa.
O indicado ao Globo de Ouro (e desde já, candidato ao Oscar), Daniel Kaluuya (“Corra!”), se destaca com sua eloquência impressionante, e entrega uma atuação bastante diferente das anteriores – ainda que já conviva com elogios frequentes. A forma como ele conduz algumas das melhores cenas do filme com seus discursos, mostra o poder “hipnótico” dos grandes líderes, e nesse caso, amplamente relatado por quem conviveu com Hampton.
Vivendo o “Judas” do título, Lakeith Stanfield (“Selma – Uma Luta Pela Igualdade”), também entrega seu melhor trabalho para nos fazer entender as várias camadas desse “traidor”, que na verdade tinha muito intrínseco um dos instintos mais humanos de todos, a sobrevivência. Lakeith passeia facilmente pelos sentimentos do personagem nos dando a sensação de que ele nunca está certo do que deve fazer. Você sente um prazer genuíno dele ao se enraizar e conseguir espaço nos Panteras Negras, ao tempo que também sente que ele não está disposto a entregar sua vida por isso tudo, ou mesmo pelo próprio Hampton (pelo qual ele parece ter nutrido alguma admiração). Não devemos esquecer do sempre excelente, Jesse Plemons (“Breaking Bad”), que também interpreta um personagem bastante ambíguo e entrega isso maravilhosamente.
Enfim, “Judas e o Messias Negro”, escancara a manipulação de uma narrativa para esvaziar movimentos negros, em uma época onde se fazia necessário calar quaisquer “messias” que surgisse. Porém, mais do que isso, o filme tem no estudo quase milimétrico da personalidade dos personagens seu maior destaque, nos deixando a mensagem de que nem tudo é “bom ou ruim” simplesmente, é na complexidade das pessoas que entendemos a construção da história da humanidade.